domingo, 10 de abril de 2022

Crônicas na Holanda 26 - Meu tributo a Jan, o sorveteiro da Prins Hendriklaan

Desde que chegamos a Utrecht, um pequeno salão fechado e empoeirado na Prins Hendriklaan chamou minha atenção. Me parecia algum pequeno negócio que, supunha eu, talvez devido à pandemia, tinha sucumbido aos lockdowns e cerrado.as portas. Nunca prestei atenção ao que estava escrito nas vitrines. Neste cinco meses de moradia em Utrecht, passei incontáveis vezes por ali. Fica na mesma rua, onde moramos, ao lado do ParkCafé, quase na esquina com o Whilelmina Park. Foi no ParkCafé que Erik e esposa nos ofereceram um café e uma boa conversa em uma manhã fria de inverno. Quando nos locomovemos, a pé, até o centro de Utrecht é o caminho mais curto. Vez ou outra, a pequena loja, empoeirada chamava minha atenção. Todavia, não imaginava que tipo de negócio teria sido.
Certo dia, já na primavera, temperatura ainda lembrando o inverno oficialmente encerrado, fiz novamente o mesmo trajeto e tive uma surpresa. A loja estava aberta. É uma sorveteria! Quem me conhece bem, sabe que sorvete é uma das minhas fraquezas gastronômicas. Desde moleque, dos tempos da sorveteria Sávio em Londrina, não resisto a uma ou duas bolas de sorvete. Em casquinha, em copo, tanto faz. É claro que entrei e vi a geladeira cheia de opções de sorvete, todos nomeados obviamente na língua holandesa, Para minha sorte, alguns nomes são parecidos com os nossos, por exemplo, pistache e chocolade. Dois dos meus favoritos! Minha primeira compra no IJssalon Vorst (Sorveteria Vorst) não me decepcionou, e virei freguês! Todo dia que passo por ali, faço a minha parada e experimento um novo sabor. Hoje, com o sol dando as caras, passei pela IJssalon Vorst e experimentei uma bola do sabor de expresso (café), junto com a tradicional bola de pistache.
Quase sempre sou atendido pelo próprio sorveteiro. Alguns dias atrás, puxei conversa com ele. Queria saber sobre quem faz o sorvete, porque a sorveteria estava fechada, como é o ritmo de trabalho dele. Ele me contou, muito orgulhoso, que o sorvete é feito por ele mesmo e com ingredientes orgânicos. Feito à mão artesanalmente como estampa a marca no seu copinho (handgemaakt ijs). Só abre a sorveteria durante oito meses por ano, por causa das baixas temperaturas, principalmente durante o inverno. Chegamos em Utrecht um pouco antes do inverno, daí a razão de ter visto a sorveteria fechada. 
Quando perguntei o que fazia nos meses em que a sorveteria está fechada, ele me respondeu: Nada! Continuando a conversa, me explicou que trabalha de segunda a domingo durante oito meses, umas doze horas por dia. E, me disse: se você fizer o cálculo, vai ver que trabalho mais do que alguém que tenha uma semana de trabalho de oito horas por dia ao longo de um ano. Não fiz o cálculo, mas minha intuição diz que ele deve estar certo. Trabalha bastante! Encerrando a conversa, comentei que ele deve ser muito disciplinado com as finanças, pois tem que fazer uma reserva para os meses que não trabalha. Ele sorriu e acenou positivamente com a cabeça. Me despedi falando meu nome e dizendo que sou brasileiro. Ele me disse o dele e se despediu com um "see you tomorrow" (vejo você amanhã), ao que respondi "for sure" (com certeza). E desde, então, me tornei um freguês costumeiro.
Semana passada, o tempo ficou instável e muito frio novamente. Fiquei alguns dias sem o meu sorvete diário. No começo dessa semana, quando passei pela sorveteria, e a vi aberta, entrei. Quase amigo já do sorveteiro, ele me contou que ficara uns dias com a loja fechada. devido ao frio e chuva. Tinha reaberto naquele dia.
Jan, este é seu nome, como bom comerciante é sempre muito atencioso e simpático. Lembro-me de que, escrevendo sobre a vida de comerciante de meus pais em um post neste blog, em algum momento falei da forma como ambos eram capazes de dar atenção aos fregueses do supermercado Gimenez, de tal forma que muitos se tornaram amigos e amigas de minha mãe ou de meu pai.
A vida em uma pequena empresa não é só feita do mundo dos negócios. Na última crônica falei da vida substantiva. Pois é, ela faz parte também da vida das pequenas empresas. Não são apenas um instrumento de fazer dinheiro. Além do dinheiro, de garantir a sobrevivência da família, trazem um significado de auto realização, sem a qual a vida seria muito sem graça.
Creio que é essa uma das razões que me levam a ser cliente de pequenas empresas. Outra aqui no bairro é a Olifje, pequena mercearia. Fica também perto de casa, na Jan van Scorelstraat, a cerca de 600 metros. Ao menos uma vez por semana estou lá. Comprando pão, suco de maçã, frutas, legumes e verduras. Além das irresitíveis iguarias da cozinha árabe, como o humus, charutinhos de folha de uva  e as deliciosas e doces baklavas.
Em uma das vezes que lá estive, puxei conversa com a mulher que ne atendia, que julguei ser a proprietária. Estava certo. Ela me contou que junto com dois irmãos criaram e mantém o pequeno comércio. Ficava em outro lugar do bairro quando iniciaram, mas estão na Jan van Scorelstraat há anos. De novo, como bons comerciantes, sempre atenciosos e atentos. Um domingo, lá fui pela manhã e tentei entrar. A porta estava fechada, um dos irmãos abriu e me disse que ainda não estavam abertos. No domingo começam a atendar ao meio dia. Nesse momento, vi a placa com a informação dos dias e horários de trabalho. Me desculpei, mas ele sorriu e disse que não havia do que se desculpar. E, obviamente, me perguntou: vai voltar mais tarde? De novo, minha resposta foi "for sure".
Quer outro exemplo? Um dia desses, seis horas da tarde, passando em frente à Olifje, um dos irmãos saía, após encerrar o dia de trabalho, e entrou em seu carro. Ao passar por ele, acenou e sorriu para mim. Ah, esses comerciantes! Sabem o que fazem.
Então, é esta Utrecht dos pequenos negócios que guardarei também nas minhas lembranças dessa temporada na Holanda. Além da vida universitária, da beleza do campus, das caminhadas em torno dos canais, levarei nas minhas memórias a doçura das baklavas vendidas na Olifje e a doce cremosidade dos sorvetes da  IJssalon Vorst.
Neste meu tributo a Jan, o sorveteiro de Utrecht, mostro na fotografia a marca bem desenhada de seu sorvete junto a uma fotografia recente do Oudegracht e a previsão do tempo que começará a esquentar na próxima terça-feira. Pelo jeito teremos, na última semana por aqui, muito sol para aquecer o coração carregado de certa melancolia por ter que deixar essa cidade que nos encantou. Quem sabe um dia, a gente volta por aqui! Mas, terá que ser no verão, para tomar um sorvete na IJssalon Vorst.

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