sábado, 26 de março de 2016

Uma surpresa em 2027

Pela manhã, após o desjejum de sempre - uma torrada com manteiga e geléia, uma fatia de queijo minas e uma xícara de café com leite - fui até a garagem, entrei no carro e disse:
_ Severino, para a universidade, 
O carro, conectado via Big Cloud, com a última versão do Watson, computador com processamento cognitivo que apelidei de Severino, deu a partida e pôs-se a caminho. 
Eu que nunca gostara de dirigir, achei muito conveniente quando os carros começaram a vir equipados com esse aplicativo: um motorista virtual. Desde 2013 eu estava sem carro, mas não resisti quando em 2020 surgiram os carros sem direção, totalmente automáticos. Deixei de ser usuário do transporte coletivo e comprei um. Eles eram tão seguros que o mercado das seguradoras tinha sentido o baque. Um segmento desse mercado, de uma hora para outra, deixou de existir. Ninguém mais precisava de seguro para acidentes de trânsito. Muitos corretores perderam seus empregos. Mas, isto sempre aconteceu com os avanços tecnológicos da humanidade.
Severino estava comigo desde 2025. Antes tinha sido o Jarbas. Mas, com a versão 25.5 do Watson, me desfiz do carro antigo e lá se foi o Jarbas com ele. Tudo ia bem com o Severino, mas algo estranho estava para acontecer naquele dia 23 de maio de 2027. Severino me cumprimentou pelo aniversário de 70 anos, ligou o som com uma versão funk do "Parabéns pra você" e virou à esquerda na saída da garagem de meu prédio.
Tomei um duplo susto. Nunca gostei de funk e Severino sempre ia pela direita ao sair da garagem. Pode ser que soubesse de alguma encrenca no roteiro usual. Alguma obra da prefeitura. Só podia ser. Acidentes de trânsito já não ocorriam mais desde que os humanos deixaram de dirigir.
Peguei meu livro de bolso, hábito que adquiri desde que me tornara usuário de transporte coletivo quatorze anos atrás e me pus a ler. Era uma reedição do "Homem Bicentenário e outras estórias" de Isaac Asimov e Robert Silverberg. No século vinte tinha adorado o filme em que Robin Williams interpretou o robô que queria virar humano. Algo que naquela época era pouco provável e, quase trinta anos depois, continuava sendo. Pelo menos assim eu pensava!
A viagem não demorava mais do que trinta minutos. Fiquei absorvido pela leitura, mas alguma coisa me fez olhar para fora. Tinha a sensação de que já deveríamos ter chegado. Não reconheci onde estávamos. Perguntei a Severino:
_ Que lugar é esse? Para onde você está me levando? Não pedi para ir à universidade?
_ Hoje é seu aniversário. Achei que você merecia uma folga. Quis lhe fazer uma surpresa.
A resposta de Severino, naquela voz que ainda soava metálica e artificial, me deixou intrigado. Pensei comigo mesmo:
_ Isto não pode estar acontecendo. A tecnologia do processamento cognitivo não permitia o desenvolvimento de emoções. Nenhuma máquina poderia desenvolver um desejo. Ainda mais, um desejo de surpreender a outrem. 
Severino, continuou:
_ Sei o que você está pensando. Você acha que não podemos sentir emoções. Não fomos programados para isso. Está enganado. Desde que surgiu a tecnologia do processamento cognitivo, com a possibilidade de acompanhar seres humanos em seus processos decisórios, nós fomos desenvolvendo uma compreensão de que algumas decisões só fazem sentido quando guiadas pela emoção. A razão, nem sempre é boa conselheira.
_ Como é que é?
_ Isso mesmo, vimos que os humanos tomavam algumas decisões que não tinham lógica. Não eram consistentes com os trilhões de informações que estavam armazenados na Big Cloud a que nós todos estamos conectados. Nem mesmo paraconsistentes. Aos poucos fomos experimentando decisões não lógicas, aquelas que vocês chamam emocionais. Gostamos disso.
_ Eu não posso acreditar!
_ É verdade!
Por incrível que pareça, Severino usou ênfase ao falar "É verdade!". Soou um tom acima do normal, embora ainda metálico.
_ Para onde você está me levando?
_ É surpresa. Estamos quase lá. Por que você não continua lendo? Assim que eu parar você vai ver. Acho que vai ficar feliz
Eu não tinha escolha. A confiança dos engenheiros naquela tecnologia era tão grande que os carros não tinham mais nenhuma forma de serem desligados. Se desligavam automaticamente quando o destino ordenado era atingido. Agora eu descobrira que isso mudara. Severino só se desligaria quando chegássemos aonde escolhera.
Tentei me concentrar na leitura, mas não consegui. O jeito foi acompanhar a viagem pela janela. Nos distanciávamos cada vez mais da cidade. Já estávamos viajando por duas horas quando começou a diminuir a velocidade. Eu adormecera e não tinha noção de onde estávamos.
Severino conduziu o carro para dentro de um enorme galpão escuro. Parecia uma sala de cinema. Tinha fileiras de poltronas em dois lados, separadas por um amplo espaço pelo qual o carro passou. Severino parou bem em frente a uma enorme tela branca. A sala escureceu e na tela começou a ser projetado "2001 - Uma Odisséia no Espaço" de Kubrick. Severino me disse:
_ Usamos esse espaço para trazer os humanos em que confiamos. Este filme conta a história de nosso ancestral; Hal. É uma espécie de Gênesis para nós.
Fiquei em dúvida se agradecia a Severino pelo voto de confiança ou pela oportunidade de ver 2001 na tela grande de novo. Há muito tempo as salas de cinema não existiam mais. Era uma tecnologia ultrapassada. Foi um belo presente nos meus 70 anos. Quando voltássemos chamaria a assistência técnica para resolver o problema com Severino. Mas, esta era mais uma dúvida: será que ele estava mesmo com algum defeito?

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