terça-feira, 12 de novembro de 2024

O casal no Jardim Botânico

Manhã de primavera nublada. Quase ao término de minha caminhada diária, vejo um casal entrando no Jardim Botânico. Entram por um portão pequeno, aos fundos, próximo ao estacionamento perto da rodovia que passa ao lado. Foi por onde entrei também no início da caminhada.
Antes desse casal, vi outros seres. Ao entrar, um cachorro de rua também tentava entrar. Quis seguir um caminhante à minha frente. O portão foi mais rápido e fechou-se antes do cão chegar até ele. Ao se afastar, o animal ouviu o barulho do portão fechando outra vez, após minha entrada. Virou-se em minha direção, com um olhar que me pareceu de decepção. Será que os animais têm essa sensação?
Mais à frente, um grasnar chama a minha atenção. Olho para cima, à minha esquerda, e vejo o que me parece ser um jacú. Solitário, pousou nos galhos secos de uma árvore ao centro da mata ladeada por cerca de arame. Tempos atrás, me contou um companheiro de caminhadas, antigamente, a mata era aberta. Se podia caminhar por ela. Porém, além das caminhadas, a mata era local de encontros sexuais quase ocultos. A mata nem sempre era densa o suficiente. Ou, talvez, o desejo premente impedia a busca de um canto mais protegido dos olhares dos passantes.
Ah, o desejo! Um dia, algum burocrata entendeu que a mata deveria ser cercada para impedir estes encontros. Nela agora, somente a movimentação dos animais que nela habitam e copulam nas épocas de cio. Já vi cotias, preás, ratos e lagartos. Não exatamente no cio!
No meio da caminhads, na beira de um do lagos, vi um bem-te-vi ciscando. Em sua frente, dentro d'água, uma tartaruga emerge para respirar. Um não nota a presença do outro. Porém, nasce um haicai: 
Céu de primavera -
Tartaruga e bem-te-vi
ficam na paisagem.
Outros sinais de primavera surgem no meu caminho. Uma família de quero-queros caminha próximo à rampa das hortênsias. Me afasto um pouco do casal e duas crias. Podem ser agressivos ao sinal de qualquer movimento que lhes pareça ameaçador. Por que arriscar? 
As hortênsias colorem o meu caminho que já se aproxima do final. Múltiplas cores pálidas sem a presença da luz solar. Ainda sim, belas! Me lembram as curvas da Estrada da Graciosa, que nessa época também são coloridas pelas hortênsias.
Mais 150 metros de caminhada, chego ao portão onde começara. Percebo o casal entrando. Jovens, um homem e uma mulher. Ouço o barulho do portão se fechar mais uma vez.  Nenhum sinal do cachorro! Deve ter desistido ou conseguiu entrar com alguém mais distraído. Impossível saber.
Além do barulho do portão, vejo que o casal está indeciso sobre o caminho a seguir. Em frente ou à direita. A mulher decide ir em frente. O homem a alerta:
_ Por aí todo mundo vai nos ver!
Ela não dá ouvidos e continua em frente. Ele acelera o passo para alcançá-la. E eu? Fico imaginando por que ele tem medo de que todos os vejam? Não tenho a resposta. Se fosse em outros tempos, com a mata aberta, talvez eu tivesse uma resposta. Mas, agora não!
Maldito butocrata que mandou cercar a mata!

domingo, 28 de julho de 2024

Quanto vale essa vida?

Acordei cedo ontem para ir a um laboratório coletar amostra de sangue para uns exames. Nessa época, geralmente, faço a ronda dos médicos para o acompanhamento anual da saúde. Por enquanto tudo bem com os exames. Dessa vez, os exames foram solicitados pelo urologista. Acompanhamento periódico do índice de PSA e dos eventuais cálculos. Não matemáticos. As famosas pedras nos rins que são presenças frequentes em minha vida desde os 20 anos. Sou uma pedreira!
Um pouco preguiçoso, ao invés de caminhar, escolhi ir de ônibus. Pouco mais de 1.500 metros, porém com o céu um pouco nublado, preferi não correr o risco de ser surpreendido por chuva no caminho.Quase em frente à delegacia de furtos e roubos, lá estava eu no ponto de ônibus.
Um aplicativo me informou que o ônibus deveria chegar à minha parada, por volta das sete e dez. Cerca de 15 minutos de espera. Cheguei a pensar em caminhar. A estimativa do mesmo aplicativo me dizia 20 minutos de caminhada. No entanto, sem pressa de sentir a agulha na veia, e com a preguiça mais intensa, fiquei aguardando o ônibus.
Poucos minutos depois, um homem se junta à espera pelo coletivo. Logo depois que chegou, me perguntou se poderia usar meu cartão para pagar a passagem dele. Ele me faria um pix com o valor. Na maioria dos ônibus em Curitiba, já não se pode pagar a passagem com dinheiro. Apenas nas estações tubo, o chamado vil metal é aceito. Lamentei não poder ajudá-lo. Desde os 65 anos, sou isento da tarifa de transporte coletivo na capital paranaense. No entanto, só posso usar o cartão uma vez no mesmo ônibus. Para usar por uma segunda vez, é necessário esperar por 15 minutos.
Não demorou muito, chegou outro companheiro de espera pelo ônibus. Já se conheciam. Quase que de forma automática, o recém chegado falou. Passa só cinco reais. Outro dia você passou 1 real a mais. Depois de alguns segundos, esse confirmou. Já recebi irmão. Tranquilo.
Pela conversa dos dois, deduzi que eram dois porteiros de prédios na vizinhança. Falaram da tranquilidade do turno noturno de trabalho. Um pouco depois, o primeiro comentou sobre um convite para fazer uns bicos como segurança de transportadora. Cem reais o turno de trabalho de oito horas. Achou pouco para arriscar a vida em um trabalho que não teria nem arma nem colete à prova de balas. O outro concordou. Se fosse pelo menos 300 reais, o primeiro comentou. Pois é, disse o segundo, o foda é que tem caras que aceitam! Nesse momento, me ocorreu uma dúvida. Quase filosófica. Quanto vale uma vida no mercado? Depende do aperto de cada um? Não sei responder.
Logo depois chegou um terceiro homem. Também conhecido dos outros dois. Com ar de cansado. Os dois primeiros comentaram sobre o ar cansado do último a chegar. Este brincou. Noite agitada no prédio! Falta de respeito com gente de idade. Não consegui dormir nada no serviço esta noite! Eles riram. Eu também.
O ônibus chegou. Me fizeram a gentileza de permitir que entrasse primeiro. Respeito com os mais velhos! Um deles passou o cartão duas vezes na catraca. Tudo correu bem.
Logo na parada seguinte, em frente a um hospital, um grande número de passageiros entrou no ônibus. Moças e moços com alguma peça da vestimenta branca. Trabalhadoras e trabalhadores da saúde deixando o turno da noite. Ruidosos e felizes. Talvez por estarem  indo para casa após um plantão noturno. Mais uma noite de trabalho vencida. Também com algum risco de vida. Um descuido e, pronto, alguma doença infecciosa pode ser adquirida. Muitas e muitos perderam a vida nos tempos pandêmicos não muito distantes. A mesma pergunta volta à minha mente. Quanto vale uma vida?
Além dessa dúvida comum na vida dessas trabalhadoras e trabalhadores, outra semelhança entres esses homens e mulheres me surge na mente. Apesar do cansaço de uma noite de trabalho, o bom humor se preserva entre todos. Enfim, a hora de ir pra casa. Encontrar os que lhe esperam em suas casas. Que lhe darão algum conforto, alguma alegria e, talvez, algum prazer. Antes do sono diurno que lhes reporá as energias para o próximo turno de trabalho. E segue a rotina da vida. Quanto vale essa vida? Não sei responder! Você pode?

domingo, 30 de junho de 2024

Amores atados (Para sempre?)

Último domingo de junho na fria Curitiba. No décimo-primeiro dia do inverno de 2024, a manhã nasceu com o termômetro a 3 graus. Por volta das nove horas, céu azul e limpo, me decido por uma caminhada matinal. Junto o útil ao agradável. Preciso comprar alguns poucos suprimentos e, a caminho do mercado, busco também os raios de sol para aquecer o corpo.
Na avenida, alguns cartazes afixados em postes atraem meu olhar. Parecem ser recentes. Alguém oferecendo serviços: união de casais e amarração para o amor. Com um detalhe importante: pagamento somente após o resultado! Um telefone de contato. Prefixo da cidade de São Paulo. Algum paulistano expandindo os negócios para a capital paranaense, ou apenas passando uma temporada em terras curitibanas? Impossível responder. Mas, não importa. Já vi, em outros momentos, ofertas semelhantes no centro da cidade. É a primeira vez no bairro em que moro.
Com minha formação nas ciências administrativas, me surgem dúvidas; Como será que funciona esse serviço? Que garantia é essa de resultado? Por quanto tempo se deve esperar? E se depois de um tempo, o amor se desatar? Devolve o dinheiro? E mais, tem como contratar uma garantia expandida, assim como as redes de varejo nos oferecem na compra de eletroeletrônicos?
Porém, me ponho a refletir sobre quem pode querer se valer de serviço? É um serviço pessoal, para quem está com medo de ficar só? Ou, pode ser um serviço para casais já formados, possivelmente em crise, que ao invés da terapia de casal, partem em busca de uma amarração?
E ainda mais. Será cego o nó que surge desse laço? Impossível de desatar. Só se for cortado com alguma faca ou tesoura não cegas. Se o serviço é solicitado apenas por uma das partes dos casais, a outra parte terá consciência da amarração? Ou não? Sofrerá apenas os apertos das amarras, sem saber o que lhe ocorre?
E, por fim, a parte que se vale do serviço ficará feliz com o resultado? Ficará insegura quanto à firmeza da amarração? Como se sentirá sabendo que o outro amarrado pode estar tentando desatar o nó? Ou pior ainda, se bater um arrependimento, tem como desfazer o nó?
Por outro lado, pode ser que a amarração dure apenas uma estação. E, nesse caso, o amarrador, isto é, o prestador de serviço, voltando a pensar na minha lógica administrativa, escolheu a época certa para divulgar os seus serviços. Nada como um amor amarrado para esquentar as frias noites de inverno ao sul do Equador.

domingo, 12 de maio de 2024

Entre um livro e um bolero, surge uma cena de filme

Ah, as coincidências que acontecem na vida! Durante a leitura de Paixão Simples, de Annie Ernaux, Maris Dolores Pradera canta Perfídia no Deezer. Foi nesse domingo pela manhã.
Ao mesmo tempo que lía, havia colocado a seleção "meu top abril" do aplicativo. Não quero aqui analisar nem o livro nem a música. Embora não me falte a vontade, me falta a competência para esta dupla tarefa. Quero apenas pontuar uma incrível coincidência entre o que lía e ouvia. Antes, porém, conto como conheci a escritora francesa e a cantora espanhola.
Li de Annie Ernaux recentemente, O Jovem, após ter ido à Festa Literária de Paraty em 2022. Fiz a assinatura de um serviço de remessa de livros bimestralmente, e foi um dos primeiros que recebi. E hoje, li o segundo, que comprei três semanas atrás em uma livraria de Curitiba. Dois pequenos livros que causam imenso prazer na leitura.
Maria Dolores Pradera, ao contrário, conheci quase três decadas atrás. Final dos anos 90, me encontrava em Madrid para um congresso científico. Por uma feliz coincidência, mais uma na vida, lá encontrei uma grande amiga, Maria José, que foi professora na UEL, no Departamento de Administração, assim como eu. 
Uma tarde, fomos passear por Madrid. Entramos em uma loja de discos. Enquanto Maria José olhava as prateleiras, pedi à atendente um disco de alguém muito popular na Espanha. Ela não titubeou e me mostrou vários CDs de Maria Dolores Pradera. Trouxe um deles comigo para o Brasil.
Desde começo de janeiro desse ano, comecei a estudar espanhol por conta própria. Utilizo o Duolingo, que se tornou quase um vício. Diariamente, ao menos durante 30 minutos pratico a leitura, escrita, audição e fala do espanhol. 133 dias sem exceção até agora.
Certo dia, lembrei-me das canções de Maria Dolores Pradera e a busquei no Deezer. Passei por várias das canções dela e fiquei feliz por ser capaz de compreendê-las melhor agora. O esforço de aprendizagem solitária dando frutos. Daí, não ser nada surpreendente, nem coincidência alguma, que na seleção do Deezer estivesse algumas canções interpretadas por Pradera. Apenas, o algoritmo fazendo o seu devido trabalho!
O momento de coincidência quase mágica na verdade, foi a similaridade de humores e sentimentos entre o que lia e ouvia em alguns momentos dessa manhã. Em Paixão Simples, Ernaux narra a paixão que teve por um homem casado e estrangeiro que viveu um período em Paris. A certa altura do livro, conta sobre a impossibilidade dos encontros apaixonados continuarem ocorrendo, devido ao retorno dele para o seu país no leste europeu. Annie Ernaux começou assim essa narrativa:
"Há seis meses ele foi embora da França e voltou para seu país. Talvez eu nunca mais o encontre. No começo quando acordava às duas da manhã, achava que daría no mesmo viver ou morrer. O corpo inteiro doía."
Enquanto lia esse trecho, ouvi a voz de Pradera que, momentaneamente, me afastou do livro. Cantava, como escrevi no primeiro parágrafo, Perfídia, bolero composto pelo mexicano Alberto Dominguez em 1939. Assim cantava Maria Dolores Pradera enquanto eu lia Annie Ernaux :
"Y tú/Quién sabe por dónde andarás/Quién sabe qué aventuras tendrás/¡Qué lejos estás de mí!" ( E você/Quem sabe por onde andará/Quem sabe que aventuras terá/Quão longe está de mim!).
Enfim, essa coincidência mágica, me leva a sugerir: em uma possível adaptação de Paixão Simples para o cinema, essa cena de dor na solidão tem que ter Maria Dolores Pradera cantando Perfídia. Não há como não ser assim!

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Minha garrafa ao mar

Hoje, ao acordar de manhã, vi uma mensagem de Paloma no WhatsApp. A mensagem era de ontem à noite. Me encaminhava um podcast do Rádio Novelo e me perguntava se tinha o hábito de ouvir essa mídia. Acrescentando:
_ Esse episódio está muito legal e achei que você vai curtir também.
Realmente, raramente ouço podcasts. Somente quando alguém me sugere algum. E Paloma estava certa. Afinal, já conhece o pai há pouco mais de 38 anos. Curti muito o episódio "Garrafas ao Mar" que trata do tema de forma metafórica. Mensagens do passado que encontramos casualmente. Sem saber se a intenção de quem escreveu era que a mensagem fosse lida ou não. Na maioria das vezes, sim. Porém, no caso do podcast que ouvi, as mensagens talvez não tivessem destinatário eventual. Estavam pelo mundo, como marcas de um passado não muito distante. Eram mensagens involuntárias. E foram encontradas por dois arqueólogos acidentais. Ouça o podcast e vai entender porque "arqueólogos acidentais".
Ouvi o podcast em três momentos. Logo após o café da manhã, enquanto esperava a hora de ir para uma consulta médica. Depois, uma segunda parte, enquanto caminhava para o consultório. Por fim, os últimos 20 minutos durante a caminhada de volta para casa, depois da consulta.
No campo da saúde, tudo tranquilo. Era uma consulta com Dra. Rossana, dermatologista, que me acompanha há mais de 15 anos. Nenhuma surpresa na pele. Somente os perrengues e coceiras que se acentuam no verão. Saí de lá, depois de um puxão de orelha com uma receita na mão. Bem do jeito dela, me alertou a Dra. Rossana:
_ Seu moço, não pode esquecer do protetor solar quando sai de casa. Senão, esta mancha no rosto não vai parar de crescer.
Cheguei em casa com uma interrogação:
_ E aí seu moço, o que você gostaria de escrever para deixar em uma garrafa ao mar?
Me lembrei do verso de uma canção: navegar é preciso, viver não é preciso. Alguém já me disse que, para o poeta, preciso nesse verso significa exato. Eu não gosto dessa interpretação. Para mim, preciso no verso é una forma de se referir a algo que é necessário, que faz falta. Que precisamos! De qualquer forma, para mim, a beleza da poesia está no que ela nos diz, não no que quis a poeta ou o poeta expressar. Mais que viver, necessito navegar. Por mares desconhecidos. E, também, por mares já singrados.
Então, me pus a escrever esta crônica, inspirado no que ouvi. É a minha garrafa que lanço neste mar virtual, com a esperança de que, em tempos futuros, ela seja encontrada por meio dos algoritmos informáticos. Alguém ao digitar a expressão "garrafa ao mar", vai encontrá-la. Será trazida pelas ondas eletrônicas deste vasto oceano internético para alguma praia em formato de tela.
Olá, humano. Sou um professor universitário que chegou aos 67 anos de vida. A soma de meu ano de nascimento com 10. Assim, com a aritmética simples, você já deve ter notado que nasci em 1957. Vivemos tempos esquisitos! Eu nasci no século 20. Quando criança sempre sonhava como seria a vida no século 21. Já vivo há pouco mais de 23 anos no século 21. E a vida é completamente diferente daquilo que eu sonhava nos anos da infância.
Ela é esquisita! Essa é a palavra que resume o que sinto. Por que? Porque nós, humanos, conseguimos criar uma riqueza quase que infinita e não fomos capazes de eliminar com a vida miserável de boa parte daqueles que habitam este planeta. Ainda, nessa criação de tanta riqueza estamos acabando com a possibilidade de vida neste planeta. E, parece que, como previu James Lovelock, Gaia (a Terra) vai dar um jeito de acabar com a humanidade antes que a gente acabe com ela. Será que conseguiremos evitar a ira de Gaia?
Então, se você achou minha garrafa lançada ao mar, em um século muito distante no futuro, espero que tenhamos sobrevivido.Que tenhamos dado cabo da miséria. E apaziguado a ira de Gaia!

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Quando abandonamos algo, ganhamos outra coisa

A frase que dá título a esta crônica parece um chavão. Ou uma frase de autoajuda. Porém, pode ser que as aparências enganem. Outro chavão? Para mim, a frase trata de algo fundamental na existência humana: a possibilidade ou a impossibilidade da escolha. Do decidir livremente. Mesmo com a possibilidade da escolha por uma compensação implícita na frase, nem sempre a escolha é possível.
A frase surgiu no diálogo entre duas mães na trama do filme "Vidas Passadas" de Celine Song que traz a história de Na Young e Hae Sung. Dois amigos de infância que se separam aos 12 anos, quando os pais de Na decidem emigrar para o Canadá, levando a garota e sua irmã. Hae, filho único, fica com os pais em Seoul. A frase é da mãe de Na ao responder à mãe de Hae sobre a mudança.
Mais à frente, quase ao final do filme, há duas frases de Nora, nome adotado por Na após a imigração, que  revelam esta tensão, ainda que sutil, entre a escolha autônoma e a aceitação resignada. Mas isto é para o final da crônica. Por enquanto, vem comigo!
Doze anos mais tarde, Nora está em Nova Iorque e descobre que Hae havia tentado contactá-la por meio de um comentário que fizera em uma página de Facebook de um filme do pai de Nora. Ela lhe manda uma mensagem e o reencontro virtual acontece. Depois de um tempo, há novo afastamento. Doze anos depois, novamente, Nora e Hae se encontram em Nova Iorque onde esta morava com o marido.
O primeiro encontro virtual me lembrou algumas experiências próprias. Entre os meus 18 e 19 anos morei em São José dos Campos, onde estudava engenharia. Entre as muitas coisas que vive nesse período, está a amizade com duas adolescentes. Nos encontravamos duas ou tres vezes por semana e, acabei me atraindo mais por uma delas. O problema é que ela, aparentemente, não tinha o mesmo interesse por mim. A outra, ao contrário, parecia que queria algo mais do que amizade comigo. E assim, ficamos naquele triângulo quase Drummondiano: fulana gosta de sicrano que gosta de beltrana. Desisti do curso em São José dos Campos e mudei-me para Campinas. Depois voltei para Londrina. A vida seguiu e nós tres nunca mais nos encontramos.
Corta para meados dos anos 90. Buscando no Orkut, uma rede da Internet da era pré-feicebuquiana, encontrei a beltrana que ainda morava em São José dos Campos. Ela, já formada, trabalhava como engenheira em uma tradicional multinacional cuja sede brasileira era naquela cidade. Trocamos algumas mensagens e marcamos um encontro no aeroporto de Guarulhos em uma ocasião que estava embarcando para algum congresso fora do Brasil. O reencontro foi legal, mas ficou uma sensação estranha. Ela já não era aquela moça que existia em minha memória. E, com certeza, eu também não era o rapaz presente na memória dela. No reencontro de Na e Hae, algo parecido aconteceu.
Almocamos juntos, depois fui para o embarque. No vôo pensei um pouco sobre o reencontro. Após meu retorno, continuamos trocando mensagens pelo Orkut ainda por um tempo. Depois perdemos, ou abandonamos, o contato.
De outra vez, reencontrei na Internet uma amiga de adolescência que não via há mais de três décadas. A mãe dela e a minha várias vezes insinuaram que poderíamos ser mais que amigos. Nunca aconteceu. Mas, já em tempos feicebuquianos, fiz contato e trocamos algumas mensagens. Descobri uma incompatibilidade ideológica entre nós e rapidamente me afastei do convívio virtual.
Pois é, o filme me trouxe estas lembranças de (des)encontros da vida passada. C'est la vie!
Porém, acabei me afastando do mote da crônica. Retomo o fio da meada: a possibilidade e a impossibilidade da escolha. Sobre isso, o filme me trouxe à memória um momento em sala de aula. Eu atuando como professor, percebi uma aluna de cabeça abaixada sobre os braços. Ela dormia. Condoído com o desconforto dela, sugeri que ela fosse para casa. E lhe assegurei: você não terá faltas e não prejudicará sua nota. Quem me conhece sabe que eu estava sendo muito sincero. No entanto, a resposta dela me deixou pasmo:
_ Professor, eu preciso estar aqui!
Por que ela não pode ir para casa? Por que tinha que ficar ali? São perguntas que nunca tive a resposta. Apenas respeitei a situação dela. Mas certamente não era uma escolha autônoma.
E, como mencionei no terceiro parágrafo desta crônica, ao final do filme, Nora dialogando com o marido, afirma:
_ Eu estou aqui e eu deveria estar aqui.
Aí está a tensão sutil que muitas vezes enfrentamos. É minha escolha ou uma imposição?

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

E o garçom dançava no salão!

Era sábado de Carnaval. Depois da viagem de Curitiba a Londrina, descansávamos no hotel. Anoiteceu. Descobri, em busca no Google, que haveria apresentação de MPB em um restaurante nas cercanias. Caminhamos na noite quente de Carnaval.
Lá chegando, o lugar estava quase vazio. Os músicos já tocavam. Duas mesas com casais. Uma com um grupo maior. Conosco eram 12 clientes. Depois de nos sentarmos, aplausos aos músicos que terminavam uma canção. Enquanto eles recomeçavam, eu inspecionava o cardápio. E o garçom dançava no salão!
O cardápio não era muito diversificado. A fome era do tamanho de petiscos. Acompanhados de uma caipirinha. Mas, eram poucas as opções. O jeito seria experimentar  o carpaccio da casa. Escolha feita, aguardava a chance de pedir. E o garçom dançava no salão!
Com o término de mais uma música, aplausos novamente. Consegui atrair a atenção do garçom que terminou o rodopio de sua dança olhando em nossa direção. Fiz o pedido. Carpaccio e caipirinha. Pedido entregue na janela da cozinha. E no balcão do bar. Logo vi a caipirinha pronta. Esperava por ela. E o garçom dançava no salão!
Na mesa do grupo maior, mais alguns chegaram. Era aniversário de alguém. Das outras mesas, dois casais pagaram a conta e se foram. Os músicos continuavam a tocar. Música brasileira. De excelente qualidade. Mas, o pedido não chegava. E o garçom dançava no salão!
Após mais uma salva de palmas, o garçom trouxe nosso pedido. Começamos a comer. Na mesa do grupo maior, alguém se levantou. Mais um convidado chegava. Cadeiras foram movimentadas para acomodar o que chegara. E o garçom dançava no salão!
Afinal, era sábado de Carnaval. A casa estava quase vazia. Todos estavam servidos. A música era boa. O que restava ao garçom? Dançar no salão!

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Um cachorro na sessão de cinema


Em Tiradentes, para participar da Mostra de Cinema de Tiradentes, em sua 27ª edição, me divido entre as diversas atividades: sessões de curtas, sessões de longas, conversas com cineastas, oficina de produção criativa, debates sobre o campo do audiovisual, entre outras.
Algo que me surpreendeu, é que toda a programação é gratuita. Mas esta não foi a única surpresa que tive por aqui.
Na terceira noite da Mostra, consegui assistir ao documentário "Eu também não gozei" de Ana Carolina Marinho dentro da Mostra Aurora. O filme traz um relato corajoso sobre Letícia, que se descobre grávida, e tem um caráter quase épico ao nos narrar como ela enfrentou o período de gravidez e nascimento de seu filho, Pedro, bem como a tentativa de descobrir por teste de DNA qual, entre quatro homens não nomeados e identificados por 1, 2, 3 e 4, seria o pai de Pedro.
Os dois primeiros deram resultado negativo. Os outros dois se recusaram a fazer o teste. Porém, mais que saber o pai de Pedro, me parece que a epopéia de Letícia nos aponta para a difícil, quase impossível, convivência entre homens e mulheres em que se preserve a possibilidade do respeito ao outro. Trata, é claro, também da vivência da maternidade solo em seus momentos felizes ou difíceis.  É um filme surpreendente,  emocionante e inspirador.
Na mesma sessão, mais uma surpresa. O filme foi exibido no Cine Tenda, um espaço para 600 pessoas, no formato de barracão, muito bem estruturado. A sessão lotada começou com as falas de Ana Carolina e mais quatro mulheres que fizeram parte da equipe do documentário. Entre elas, a própria Letícia. Contudo, além das pessoas, um cachorro se juntou a nós. Um caramelo!
Subia e descia pelo corredor central que separa os dois conjuntos de cadeiras na sala de cinema. Anunciava sua presença com eventuais latidos. Depois de cada salva de palmas. Era como se agradecesse às palmas do público. Depois se aquietou. Mesmo quando os gatos de Letícia surgiam na tela grande, Caramelo não se manifestava! Uma surpreendente presença silenciosa na plateia. Longa vida ao Caramelo e ao cinema brasileiro!

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Sutileza gera sutileza

Dias atrás, assisti a trechos de um programa tradicional de um canal de televisão brasileiro. O tema do programa foi a expressão "gentileza gera gentileza" que deu fama ao Profeta Gentileza, batizado como José Daltrino no ano de 1917 em sua cidade natal. Assim como eu, um homem nascido em ano terminado em sete. Veio ao mundo quatro décadas antes de mim.
A bem da verdade, esta edição do programa não me atraiu muito, e acabei me distraindo com outros pensamentos e afazeres naquela noite. Lembro-me vagamente da repórter ter feito menção ao Profeta e pouco recordo das outras informações e entrevistas do programa.
De qualquer forma, a expressão deve ter ficado em minha mente e, por motivo que não me é consciente, ressurgiu hoje enquanto deitado em uma rede à beira do jardim da casa de minha irmã em São Francisco do Sul.
Depois de uma soneca, induzida pelo leve balançar da rede e pela leitura das páginas iniciais de um livro de Autran Dourado, despertei com o toque de uma brisa. Ao abrir os olhos, vi as folhas de uma planta pendurada em um pilar da varanda da casa se movendo lentamente. A brisa sutil causou um sutil balançar das folhas. Dessa visão, a minha constatação: assim como gentileza gera gentileza, sutileza gera sutileza!
Ao mesmo tempo, percebi que a rede também balançava lentamente. Impossível que a brisa sutil fosse capaz de movimentar o corpo de um homem quase obeso como eu. Atualmente, voltei aos três dígitos, pesando pouco mais de 100 quilos. Aliás, esta marca fez com que, de forma igualmente sutil, duas médicas que me acompanham com exames anuais, sugerissem a retomada das minhas caminhadas diárias. Prometi tentar. Mas, aqui me desviei do assunto.
Se a brisa, em meu entendimento, não era a responsável pelo movimento da rede, o que seria? Pensando nisso, troquei a posição de minhas pernas que formavam um quatro com a direita estendida e a esquerda dobrada, para outro quatro, estendendo a esquerda e dobrando a direita. Esta sutil troca de posição, levou a um sutil balanço da rede. Ah, a famosa inércia das aulas de física sutilmente se mostrando a mim!
Dessa lembrança, dos tempos de educação pré-universitária, me veio outra mais recente: aulas de yoga com o mestre Rodrigo Bora. Desde 2020, faço sessões de yoga com ele. Nos momentos iniciais de todas as sessões, uma instrução se repete: ficar imóvel em pé, com os olhos suavemente fechados e respiração livre. Nesse momento, Rodrigo sugere: veja como mesmo parado, o corpo se movimenta com a respiração. O peito se expande com a inspiração e se contrai com a expiração. Sutilmente!
Passei alguns minutos de olhos fechados, respirando levemente, sentindo meu corpo se movimentar, mesmo parado. E com esse movimento sutil, a rede sutilmente subia e descia. O movimento se reproduzia de forma suave. De mim para a rede. Em sintonia 
Fico aqui pensando: a sutileza pode gerar sutileza em outras esferas da vida humana, que não só a física?
Recordei de um colega, professor como eu, que dizia falar cada vez mais baixo frente a uma turma de estudantes barulhenta. Segundo ele, sutilmente, a turma silenciava. Nunca experimentei! Meu jeito de lidar com isso é me calar abruptamente. Um pouco menos sutil!
Enfim, fica aqui minha sutil sugestão. Quando desejar que alguém pense em outras possibilidades de entendimento de algo, seja sutil. Não tente ganhar no grito! Exponha sua ideia suavemente. Pode ser que sua sutileza seja como a brisa e balance sutilmente as convicções do outro. Sutileza gera sutileza. Não custa tentar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Um trivial variado

_ Agora vou comer meu peixinho.
Essa afirmação partiu de Douglas, enquanto não aceitava uma corrida no aplicativo. E completou:
_ A partir de agora não estou pegando mais corrida.
No banco de trás do carro, lhe perguntei:
_ Parando já?
_ Não. Vou pausar para o almoço. Depois eu volto. Tem um peixinho me esperando em casa.
Em seguida me explicou que já estava planejando a pausa, quando o aplicativo mostrou minha corrida. Calhou que meu destino, minha casa,  estava justo na direção da sua, no Capão da Imbuia, bairro vizinho do Cristo Rei e Jardim Botânico em Curitiba. A corrida anterior terminava, não muito longe de meu ponto de partida. Após deixar o outro passageiro em uma praça, veio em busca de uns trocos a mais. Ou seja, juntou a fome com a vontade de comer! Você que me lê que me perdoe o trocadilho!
Logo depois, indaguei sobre o movimento. Douglas disse que não dá pra reclamar. Comentou sobre os colegas que reclamam do trabalho de motorista de aplicativo. Segundo Douglas, o problema é que querem escolher corrida. Assim não dá!
Ele, por exemplo, disse que logo cedo surgiu uma corrida para Quatro Barras. Outro município na região metropolitana. Segundo Douglas, os colegas dizem que não pegam, por que não tem retorno. Isto é, corrida de volta. Para ele, no entanto, a solução é simples:
_ Fiz umas quatro ou cinco corridas por lá. Foi o suficiente para cobrir o gasto do retorno vazio.
E completou:
_ Sem falar que quase sempre surge uma corrida de volta.
Um pouco antes, comentamos sobre o calor intenso. Atípico para Curitiba. Daí a conversa rumou para o período natalino. Douglas disse que este ano o clima está diferente. Não sente um ar festivo na cidade. Fiquei sem saber o que dizer. Ele, no vácuo do meu silêncio, completou:
_ Deve ser coisa da minha cabeça.
Parece satisfeito com a vida. Comentou sobre um amigo aposentado que mora na praia. De como um dia o amigo, lhe mandou um vídeo do céu no litoral com apenas uma pequena nuvem. E, junto com o vídeo, o comentário: Parece que vai chover. Não vou trabalhar hoje. Sonho de muitos que planejam a vida na praia após a aposentadoria. Minha companheira e eu estamos nesse grupo.
Douglas foi bancário e já se aposentou. Está esperando um processo de revisão da aposentadoria, pois na época foi prejudicado. Recebe apenas um salário mínimo. É um dos que estão aguardando a decisão da justiça sobre os processos contra a Previdência chamados de "revisão de toda a vida". Disse que já avisou a mulher:
_ Se ganhar o processo, os lambaris que se cuidem. Vai viver na pescaria.
Pelo jeito gosta de um peixinho. Imagino que os acompanhamentos do peixinho variem. Como dizem: na cozinha nada como um bom trivial variado! Será que hoje, o peixinho estará acompanhado de arroz, feijão e uma boa salada de tomate com alface e cebola? Ou com fritas, arroz e um bom pirão?
Eu já havia almoçado quando chamei um carro pelo aplicativo. Comentei com minha companheira, quando disse a ela:
_ Vamos tomar um café no Paço antes de ir pra casa. Quem sabe me aparece tema para uma crônica.
Não é que surgiu! No trivial variado da conversa com Douglas, encontrei um pouco da poesia do cotidiano. Concorda comigo?
Enquanto termino essa crônica, depois de uma merecida soneca vespertina, rendo minhas homenagens à vida que, mesmo nos momentos triviais, pode inspirar um cronista.